Fotografia: Evelyn Sacramento
Por Juliana Teixeira e Rafael Amorim/ Bagaceira Talhada
56 quadros espalhados pela casa. Livros empilhados numa estante ao lado da parede. Discos de vinil no canto da sala. Uma coleção de cactos que se perdem entre os catálogos de arte. É com um sorriso no rosto e um abraço de quem já nos conhece há muito tempo que ela nos recebe. Logo de cara, não tem cerimônias: “fiquem a vontade”, “tirem o sapato”, “coloquem a mochila onde quiserem”. Nascida em Cachoeira, na Bahia, Everlane Moraes chegou em Aracaju com quatro anos de idade e criou raízes em um bairro da cidade que embora seja no centro, funciona como uma periferia. Lá tem carnaval, São João, natal. Tudo coletivo, na rua, como uma comunidade. “Tudo aqui é dança, é canto, tudo se bate um tambor, entendeu? Tudo faz festa”.
As influências para o cinema começaram em casa. Filha do artista plástico Everton Santos, Everlane viveu arte desde muito cedo. O pai queria ser filósofo e quem se tornou foi o irmão. O irmão queria ser cineasta, mas quem se tornou foi ela. Cada um foi vivendo o sonho do outro, numa daquelas histórias que parece sair de um filme de domingo. Suas lembranças são pontuais e ela descreve o processo de criação que assistia e como isso foi determinante na sua história, com carinho: “Você vê aquela tela vazia e de repente surge uma imagem. Você não entende muito bem o que é, mas você sabe que é uma coisa bonita.”.
Quando cresceu, a única certeza que tinha era de que viveria pela arte. Conta, decidida, que não acredita que um artista precisa de um emprego secundário para viver e declara, com brilho nos olhos, como sempre lutou e luta para se manter daquilo que cria. Everlane começou sua carreira no cinema em 2007, quando foi uma entre as cinco pessoas selecionadas para trabalhar em um filme sobre as obras de Arthur Bispo do Rosário. Foi a partir daquele momento que ela começou a traçar seu caminho na área, chegando, mais tarde, a lançar seus próprios filmes.
O cinema de Everlane é feito de imagens. Daquelas que absorveu das pinturas do pai, das influências da Igreja Católica e do Candomblé, sua atual religião. Foi a necessidade de transpor tudo isso que fez com que ela encontrasse na sétima arte um dispositivo de interdisciplinaridade, capaz de dimensionar e abrigar os exageros de sua mente. Foi no cinema que ela conseguiu unir todos os elementos que a construíram: as artes plásticas, a música, a filosofia e a literatura. Criando, no mundo real, a imagem que ela quer transmitir na tela. E transmitindo na tela pela visão de uma mulher negra, pobre e da periferia, como costuma dizer. Características que só a tornam ainda mais singular no mercado ao qual poucas cineastas negras conseguem se destacar.
As mãos de Everlane estão em muitos trabalhos no cinema sergipano e fora dele. Em “Caixa D’água: Qui-lombo é esse?”, ela retrata a importância do âmbito cultural e histórico do bairro Getúlio Vargas. O filme foi extremamente aclamado pela crítica, rodou o mundo em festivais de cinema e o mais importante: resgatou assuntos acerca da consciência e identidade racial. Mas é com o filme “Conflitos e Abismos: a expressão da condição humana” que ela não só estabelece uma relação com seu público, como homenageia, singelamente, seu pai. As cenas, os quadros em
movimento, os enquadramentos no rosto do pai. Cada detalhe pensando em surpreender, encantar, emocionar. Aos outros. A ele.
É com essa conexão artística que Everlane se liga ao pai, à família, à comunidade e ao público. O pai, depois de ver seu trabalho retratado no filme da filha que conseguiu em 15 minutos sintetizar a relevância de um trabalho de 50 anos, disse emocionado: “A partir de agora, eu posso morrer”. É sobre uma vida dedicada à arte que Everlane fala durante toda a conversa e é entre cada palavra que o amor pelo cinema, pelas artes plásticas, pela literatura se faz presente. Seu caminho ainda é longo, sua carreira apenas crescerá, mas é com a fala de seu pai que a sua produção ganha vazão. De fato, é preciso morrer, mas morrer de arte. Morrer na arte. Morrer, por fim, pela arte.
EVERLANE MORAES: A CINEASTA POR TRÁS DA MULHER; A MULHER DENTRO DA CINEASTA
26/02/2015
