O MODERNISMO NÃO NOS REPRESENTA
09/03/2015

Por Thaís Machado
"A questão não é ser negro, mas sê-lo diante do Branco..."
Frantz Fanon.
O Museu Afro Brasil inaugurado em 2004 por concepção de Emanoel Araújo colocou em evidência as distorções da representação do negro na história da arte e da cultura produzida no Brasil. Para além dos essencialismos que se queira evocar, as identidades criadas por um grupo sobre outro e as identidades construídas por sujeitos da própria história apresentam diferenças relevantes. Ainda nessa perspectiva, a concepção do Museu Afro Brasil viria a contribuir na importância da participação de negros e negras não como meros coadjuvantes, porém como efetivos protagonistas na história cultural do país. Ao dizer isto, se está chamando atenção para um tipo de produção de conhecimento que além de repensar as representações produzidas a partir da ideologia dos colonizadores, se procura também desmontar o epistemicidio em relação as reais contribuições negras, transcendendo a redução dos negros a sua condição de escravizados e trabalhadores subalternos, ou das recorrentes esteriotipações já naturalizados no imaginário e cotidiano brasileiro. A história neste caso é inversa e contra hegemônica. Para isso é necessário uma atitude crítica em relação ao modo canônico de se transmitir a História da Arte no país, e tal tomada se faz possível provocando a contestação e a necessidade da inovação de pesquisas que se debrucem em uma historiografia da arte que traga novos elementos para a História da Arte no Brasil, e não apenas isso, uma historiagrafia que caminhe na perspectiva de descolonizar-se para que repare efetivamente as assimilações racistas perpetuadas no imaginário da nação.
O quadro A Negra, de 1923, da artista plástica Tarsila do Amaral, fez parte com suas outras obras "Antropofagia" e Abaporu da trilogia que expressava muito bem os ideais modernistas que estava se inaugurando na segunda década do século XX. A obra foi uma das precursoras do que seria essa encarnação de uma brasilidade estética, muito pertinente a ideologia vigente da época, que paulatinamente rompia com um pessimismo advindo do racialismo científico predominante no século XIX e passava para um momento que veio a valorar positivamente a presença das raças e a mistura delas em nossa conjuntura. O advento do Modernismo se mostra particularmente peculiar no que se refere a este paradigma, e na década de trinta com Gilberto Freyre, a elite intelectual pôde consolidar essa nova visão racial, onde a metáfora democracia racial passa a caracterizar a sociedade brasileira. Curiosamente, a respeito do que seria esta democracia das raças, uma espécie de especulação sobre uma convivência harmoniosa entre negros, brancos e ameríndios, os quais desfrutavam das mesmas oportunidades de existências sem os efeitos das condições étnicas que marcavam os indivíduos, os negros enfrentavam socialmente, como ainda enfrentam, as desigualdades estruturadas no período de escravidão, algo que se atualizava na modernização do país. Neste ponto quero situar a obra em questão. Primeiro é preciso mensurar as motivações pessoais da pintora e as características pictóricas da obra. A mulher negra, de seios fartos e lábios grossos fez parte da infância de Tarsila, filha de um grande fazendeiro, a própria artista rememora as histórias que inspiraram o quadro:
A história bizarra como as tantas outras que fizeram parte da vida das mulheres negras escravizadas impressionaram a garota Tarsila, mas não ao ponto de pictoricamente comunicar tais abusos e qualquer indignação. A Negra de Tarsila está ali, parada e nua. Ela é estática como uma imagem fixa no imaginário de sua artista. Seus traços grossos que para a elite artística representava a transgressão dos modelos clássicos de padrão de beleza no mundo das artes, eram para realidade social do negro a constituição de esteriótipos fenotípicos que se fixavam na cultura do país enquanto formas de racismo. Segundo algumas releituras que são feitas sobre A Negra, e mesmo em depoimentos da autora, ele teria uma memória afetiva, um saudosismo da artista em relação as suas amas e a sua infância na fazenda. Notadamente se percebe o distanciamento social e racial da artista em relação a sua negra pintada. A obra A Negra, foi também interpretada como revolucionária. Em vista das pinturas acadêmicas e a partir da influência das vanguardas européias, onde a artista foi formada, o quadro foi uns dos primeiros a receber a aclamação modernista. Mas certamente tal análise partia de outro ponto de vista que não este que reclama o fato de que os rodeios raciais escondem a verdadeira caricaturização do negro, como também não denunciam os maus tratos da escravidão, servindo, portanto para mistificar o fato de que a escravidão tivesse sido menos sofrível para os africanos a partir da relação afável com os seus senhores. Ao fundo, um marco que entrelaça a composição da negra à frente (imaginário brasileiro), com a parte do fundo, que se constitui em um exercício cubista, disciplina construtiva moderna européia, se complementa o arcabouço visual tipicamente ressaltado pelo movimento, porém denota elementos vindos de fora, nem tão genuinamente brasileiros como se reivindica o surgimento do movimento. Voltando ao início deste texto, particularmente à epígrafe de Frantz Fanon, Emanoel Araújo e ao Museu Afro Brasil, as intenções da obra A Negra e do Modernismo brasileiro não foram capaz de confrontar os problemas sociais enfrentados pela população negra. Por mais afetiva que tenha sido a memória de Tarsila do Amaral, sua obra não contribui para retirar o negro da categoria de objeto de arte, e o que fez foi o inverso disso. É possível dizer que tal representação tenha atuado juntamente com outros segmentos para a dissimulação dos preconceitos raciais e para perpetuação da desigualdade racial. No caminho contrário, a superação do mito da democracia racial, a resistência de toda e qualquer forma de racismo, a preservação da história, memória e tradições africanas e afro-brasileiras e a possibilidade de serem sujeitos de sua própria história é o que podemos chamar de efetivamente revolucionário.
"Um dos meus quadros que fez muito sucesso quando eu o expus lá na Europa se chama A Negra. Porque eu tenho reminiscências de ter conhecido uma daquelas antigas escravas, quando eu era menina de cinco ou seis anos sabe? escravas que moravam lá na nossa fazenda, e ela tinha os lábios caídos e os seios enormes, porque, me contaram depois, naquele tempo as negras amarravam pedras nos seios para ficarem compridos e elas jogarem para trás e amamentarem a criança presa nas costas."
(Entrevista concedida a revista Veja (23/02/1972), a Leo Gilson Ribeiro).

A Negra (1923), de Tarsila do Amaral
Óleo sobre tela
100 x 81,3 cm