por Morgana Damásio
“– Assim? – Não. Assim não tá dando pra ver lá dentro. Abre a vagina com a mão para que eu possa enxergar direito e tosse 3 vezes fazendo força como se fosse na hora do parto.”
Domingo é o dia da semana mais esperado por ela. Somam-se quase dois anos que neste dia ela cumpre o ritual de levantar às quatro e meia da manhã para se aprontar para o momento aguardado. Café coado, ela segue pelas ruas do bairro da periferia onde mora, junto ao sol ainda tímido, em direção ao ponto de ônibus. Horas depois, já no fi m de tarde, nos conhecemos. Aqui ela vai se chamar Maria. O cenário é a porta do Presidio Lemos Brito, maior unidade prisional da Bahia, localizado no bairro da Mata Escura, em Salvador.
Pergunto a Maria como se dá o processo de revista para os visitantes. “No modulo que eu vou, se tiver de calça só faz baixar a calça e depois suspende. Agora, se a agente (penitenciaria) tiver suspeita de alguma coisa, aí ela manda tirar. Pede a roupa pra olhar. Olha a roupa toda, a calça, a blusa, tudo. Agacha três vezes e você tem que fazer força, né? Pra ver tudo.
E não importa nada, nem se a mulher tá menstruada. A gente fi ca constrangida, ainda mais quando tá menstruada. Tem que tirar o absorvente e ela fi ca olhando tudo ali. É horrível”, relata.
Maria conta que em função da revista seu filho a pediu, algumas vezes, que deixasse de fazer a visita. “Prefiro me submeter a essas humilhações do que deixar de ver meu menino”, ela segue falando. Os depoimentos surpreendem, assustam. “Tem uns dois meses que uma amiga minha perdeu a criança, tava grávida de três meses e manda- ram a menina agachar, sabendo que ela tava gravida. Ela (a agente peniten- ciaria) mandava fazer tanta força, que depois ela perdeu o bebê”.
Segundo a Rede Justiça Criminal, composta por oito organizações que lutam em conjunto por bandeiras relacionadas à melhoria do sistema de justiça criminal, a prática descrita por Maria acontece toda semana com mais de meio milhão de mulheres, homens, idosos e crianças. A justificativa utilizada é o impedimento da entrada de armas, drogas, celulares e outros objetos proibidos dentro das unidades prisionais.
Acontece que, segundo estudo divulgado pela Rede, a quantidade de objetos encontrados durante a revista é “ínfima se comparada às apreensões realizadas dentro das unidades”, e que “a maioria dos objetos ilícitos encontrados com os presos não entra com familiares”. Uma importante pista que pode confi rmar essa hipótese são os dados da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, que informam que a cada 10 mil revistas realizadas nos presídios do estado, em apenas três foram encontrados objetos considerados ilegais na prisão.
AS REVISTAS SÃO INCONSTITUCIONAIS
Para o professor e advogado Samuel Vida “não há respaldo constitucional algum” no processo de revistas intimas. Ele integra o Aganju, Afro-Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica, organização que se debruça no eixo Direito e Relações Sociais. A Constituição Federal da Republica do Brasil, de 1988, assegura no seu primeiro artigo o principio da dignidade da pessoa humana. Mais a frente, o artigo quinto, dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais e prevê que ninguém pode ser submetido a tratamento desumano ou degradante, e que a intimidade é inviolável. Ainda no mesmo artigo, é defi nido que a pena não passará da pessoa do condenado – não pode, dessa forma, ser estendida aos familiares.
Além dos itens previstos na constituição existe também uma resolução de 12 de junho de 2006, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que recomenda a utilização de equipamentos eletrônicos de revista em presídios e a preservação da honra e da dignidade da pessoa durante os processos manuais de revista. A revista intima também foi condenada pelo Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU, em 2012, e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969.
“Mesmo um preso, mesmo um condenado ou aquele que está sob custódia do estado aguardando julgamento, tem pela constituição assegurada a sua dignidade. Além de uma série de direitos, inclusive, de não ser exposto a nenhum tipo de tratamento constrangedor, cruel, degradante, desumano. A forma assumida pela revista intima, no contexto prisional brasileiro é reveladora de todos esses defeitos. Portanto, é uma pratica totalmente descabida. Seria descabida para um apenado, ainda mais para um cidadão que tá em pleno gozo de todos os seus direitos, que não cometeu nenhuma infração, que vai até a unidade penal realizar uma atividade que é absolutamente lícita, direito seu e do preso”, explica Samuel.
Para o advogado, existe um silenciamento por parte do estado e da sociedade que veem o preso, e por extensão, seus parentes, como pessoas não merecedoras de direitos. “A violação não é praticada por um ato isolado de um agente penitenciário que burla o ordenamento. Ela é feita com o consentimento do Estado, que tem ciência dos abusos, não oferece deliberadamente alternativas e meios técnicos que poderiam suprimir por completo a revista vexatória, e acaba transformando esse procedimento num segundo procedimento punitivo, que se estende, inclusive, a família do apenado”, diz.
A visão do advogado é com- partilhada pela Associação de Familiares e Amigos de Prisionei- ros e Prisioneiras do Estado da Bahia (Asfap). A Associação, que foi criada em 2005, por conta das condições as quais os presos são submetidos, prestou denuncia ao Ministério Público, em junho deste ano, a respeito do caráter das revistas realizadas nos presídios da Bahia. “A Asfap vêm batendo de frente com essa situação. A revista vexatória vai de encontro com a nossa Constituição. Ela expõe todo e qualquer familiar dos prisioneiros e prisioneiras, tornando a situação humilhante, torturadora, vexatória” afi rma a coordenadora da Asfap, Elaine Bispo, que ressalta que os visitantes não aceitarão mais esse tipo de conduta.
Segundo a coordenadora, os relatos de visitantes que se sentem coagidos por parte dos agentes são episódios corriqueiros. Além da revista manual em partes do corpo como vagina e anus, Elaine também sinalizou as más condições de higiene dos espaços utilizados para as revistas e a presença de crianças presenciando o procedimento.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (SEAP), mas até o fechamento da edição não obteve retorno. O órgão, na Bahia, é responsável por “promover a melhoria continua do sistema prisional com ênfase na racionalização da gestão das práticas operacionais, no aprimoramento das condições de segurança e na garantia da humanização do sistema”.
PL PRETENDE PROIBIR REVISTAS VEXATÓRIAS
Apresentado pela Senadora Ana Rita (PT/ES), o Projeto de Lei (PL) 480 / 2013 etermina que a revista pessoal deva ser realizada com respeito à dignidade humana, “sendo vedada qualquer forma de desnudamento, tratamento desumano ou degradante”. O PL prevê também que, prioritariamente, a revista deve ser feita por meio de equipamentos eletrônicos detectores de metais. A revista manual fi caria portanto restrita apenas em situações onde, por motivo de saúde, o visitante não possa passar por equipamentos eletrônicos ou quando, finalizado o procedimento, persistir a suspeita de porte de objetos proibidos. Nesta ultima ocasião, objetivando manter a integridade física, psicológica e moral do revistado, o projeto defi ne que a revista se dê de forma individual, vetando toda e qualquer forma de desnudamento, o uso de espelhos, esforços físicos repetitivos e a introdução de qualquer objeto nas cavidades corporais do visitante.
O Projeto de Lei, aprovado em junho pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do senado, caso não haja recurso, seguirá para votação na Câmara. Samuel Vida acredita que a aprovação do PL é importante porque uma vez transformado em lei, a partir de um debate institucionalizado, é evidenciada a necessidade de se adotar outro padrão, porém ressalva, que independe de lei, a revista intima é ilegal, inconstitucional, e deveria ser imediatamente banida por ser violadora dos direitos fundamentais. “A hipótese da legislação tem uma utilidade tática no processo de enfrentamento politico porque ela possibilita um debate que a sociedade registra em fazer. O estado finge não ter responsabilidade, mas a rigor caberia ao Ministério Publico uma ação imediata de interdição desse tipo de prática e caberia eventualmente as entidades que lutam pelos direitos humanos ingressar com medidas, formular ostensivamente a denuncia, pra que esse procedimento possa cessar imediatamente, ou seja, não é o caso de algo legal que precisa ser objeto de uma nova legislação pra deixar de ocorrer”, afirma.
BRASIL: CAMPEÃO NA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A revista vexatória está longe de ser a única violação encontrada dentro dos presídios brasileiros. Manchetes sobre a preparação da copa no Brasil ofuscaram uma noticia que deveria ter chamado à atenção dos brasileiros: conforme os dados do Centro Internacional de Estudos Prisionais (ICPS), do King’s College, de Londres, temos a terceira maior população carcerária do planeta terra. São 715.655 presos, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Na Bahia, segundo dados divulgados no Portal da SEAP, em 12 de Agosto, das 10 unidades prisionais localizadas na capital do estado 05 se encontravam com a capacidade excedente. Já no interior dentre as 14, 12 delas apresentavam superlotação. Entre os números de destaque estava o Conjunto Penal de Itabuna, com 482 pessoas a mais que sua capacidade, que é de 478.
O presidio apresentava número excedente de presos mesmo com a rebelião, provocada por briga de grupos rivais, no dia 23 de maio. O saldo do episodio são dois mortos e quinze feridos.
A Bahia também se destaca nos percentuais de presos na fila de espera do julgamento com 44,51% da população carcerária em condições provisórias. Para Samuel Vida o modelo de “superencarceramento” presente no país está ligando intimamente com o modelo de hierarquia social e racial, engendrado historicamente, que tem a função de legitimação da desigualdade. Por isso ele seria articulado em sintonia com o modelo de opressão sócio racial mantido no Brasil.
“O preso é fundamentalmente o negro, o pobre, que já é estigmatizado como indesejável. É alvo de discriminações varias, inclusive vive de uma maior vigilância policial, o que faz com que seja cliente previamente escolhido pelo estado e conduzido pra lógica de encarceramento. Isso põe inclusive a nu a falsa ideia vendida pela mídia conservadora e pelos partidos políticos, em geral, inclusive, até de partidos de esquerda, de que há uma impunidade no país em relação aos delitos comuns ou de que há um sistema repressor falho. Na verdade o sistema repressor brasileiro é extremamente eficaz na repressão daqueles setores vulneráveis e certamente eleitos como clientela do sistema prisional”, afirma.
Na mesma medida em que o Brasil tem vivido nas últimas décadas uma ascensão dos números de encarceradvação dos assassinatos de jovens negros.
“A política de repressão opera em dupla mão. É revelador o fato de que nos últimos dez anos quando o estado brasileiro mais adotou políticas de inclusão, PROUNI, bolsas, cotas nas universidades, tenha sido também o período de maior intensificação de assassinatos de jovens negros, o que mostra, que a inclusão quando é feita sem mexer na política de segurança pública, é uma inclusão incompleta. Ela inclui uma parcela e elimina a outra. Só pra se ter uma ideia, nos últimos dez anos o risco de um jovem negro ser assassinato aumentou, e o risco de um jovem branco, reduziu em aproximadamente 30%,”, afirma Samuel.
- O sistema carcerário é um fracas- so?, pergunto.
- “Eu não diria que é um fracasso, eu diria que é um sucesso, pois ele foi montado pra isso. Todo sistema penal baseado no conceito de defesa social, é estruturado para legitimar as opressões seculares de raça, de gênero de classes, que reproduzem singularmente numa dada sociedade. Então não podemos falar no fracasso, há um grande sucesso e é um sistema penal exitoso porque é motivado para perpetuar esses absurdos, violar o direito desse segmento, para criminalizar, e ao mesmo tempo, alimentar toda uma indústria conservadora de segurança pública, baseada na repres- são”, finaliza.