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O CANDIDATO

 

por Lande M. Onawale* (para Josafá Mota)

 

 

Não consegue dormir. A cama parece mais estreita e ele esbarra algumas vezes na mulher, que ressona profundamente. Como pode?! A insônia dele o faz rolar até a infância, trazendo o mesmo frio na barriga - o temor de não ter seu desespero acolhido por alguém que é acordado no meio da noite. Fingia um sono agitado, mas era, na verdade, um pedido de ajuda.

 

Pensa na reunião que ocorrera na sede do partido, mais cedo. Tensa. Ele praticamente só, se debatendo em argumentos contra a sua própria corrente política. A namorada também fuzilava a resistência dele, seu titubear. No carro, se disse nervoso com a proximidade da Convenção. O que era parte da verdade, pois embora fosse um dos melhores quadros do partido, um discurso naquela linha nem de longe lhe acenava com um começo. Certa da vitória, a mulher lhe compreendeu e beijou sua face. E é nos braços dessa certeza que ela agora dorme o sono dos exaustos. Ele, ao contrário, não está em paz com a decisão do grupo, que lhe toca tão intimamente, e no fundo ainda não é sua. Com mais uma ou duas cutucadas, acorda a mulher, que senta na cama com um esforço sonolento. A fala pausadamente irritada.

 

- O quê foi, Guilherme?

- Nada...

 

Deduzindo o que seria, a companheira suspira e cruza os braços com irritação. Ele tem o olhar preso no teto e, constrangido, vacila:

 

- Sabe, amor... você tem certeza?

 

Com a impaciência, o cabelo da mulher escorre das orelhas várias vezes, e ela os recoloca rapidamente no mesmo lugar, num gesto peculiar de nervosismo. Busca os olhos dele, e diz duramente:

 

- Guilherme, hoje conseguimos, enfim, fechar uma posição quase unânime em torno dessa proposta. Foram horas, Guilherme, horas. Não há mais o que discutir quanto a isso. Você é negro, sim!

 

Não sabia como refutar os argumentos sem parecer racista, e nem como fazer aquela idéia habitar nele com naturalidade. O candidato negro do partido. Nunca havia pensado nisso – e como se espantou ao saber que os companheiros pensavam! A pele clara e o cabelo que raramente deixava ganhar altura, se não escondiam de si mesmo alguma origem negra, igualmente não faziam dessa origem uma questão. Não tinha este pertencimento, essa identidade. Era na Europa, no pensamento ocidental onde sugava seus conhecimentos. E havia os embates contra o Movimento Negro e sua cantilena de racismo, racismo... Ora, o racismo será vencido pelo socialismo! Como outros membros do partido, não via substância ou fundamentação teórica na militância negra, embora reconhecessem que a questão racial se tornou pauta no discurso político nacional. Mais à custa de tambores e lágrimas que de argumentos, ironizava.

 

Agora o partido precisava de um nome que pudesse transformar em votos este apelo dos negros, sem perder de vista que a questão racial é, no fundo, social e econômica. Era ele esse nome. Mesmo tomado por um conflito que, naquela intimidade, sua nudez não fazia questão de ocultar.

 

- Não é preciso a gente se fazer passar por um deles, para os representar...

- Guilherme, você é um deles!

- Eu não me sinto.

- Mas é.

- Me sinto um impostor...

 

O desamparo da declaração evoca na mulher uma ternura.

 

- Querido... Depois da convenção se sentirá melhor, legitimado. E ela afaga seu cabelo, que tentava convencê-lo a deixar crescer. Até avó negra você teve...

– Bisavó...

- Que fosse tataravó! Você pode falar em nome dela, que podia ser até do candomblé.

- Logo vai querer que use colar de orixá... Algo incompatível com minhas convicções.

- E por que não? Lembre da tese do velho professor: Karl Marx não era ateu!

- O que nosso ensaio monográfico contestou veementemente. Esqueceu?

- Porque éramos imaturos política e teoricamente, Guilherme. A crença em Marx era mesmo seu maior atestado revolucionário. E que generosidade!

 

O homem a olha incrédulo, mas de novo reflexivo. Admirava nela uma chama de convicção e loucura que, nele, via acomodar-se com os anos. Foram colegas na faculdade, seguiram companheiros de partido e, há alguns meses, namoravam.

 

Ela vai ao banheiro, enquanto ele rememora conflitos entre o partido e a militância negra. Como na plenária sobre a vinda do recém liberto Nelson Mandela, em que defendeu a participação dos partidos de esquerda no palanque para dar um tom político ao ato. Um membro do Movimento União Negra, último inscrito, o fustigou. Nosso ato não precisa da esquerda branca para ter sentido político. Ao contrário, a presença desses partidos será a negação da essência política do nosso ato. Seguiu-se uma balbúrdia memorável, que saiu porta afora do local da plenária. Afirmações absurdas como essa nunca foram (nem seriam!) compreendidas por ele. Ainda bem que, se a voz dos tambores cresceu, desapareceram os fóruns e organizações que davam palco para essa militância que racha a unidade do proletariado.

 

De volta ao abrigo do lençol, a mulher comenta:

 

- Até parece que é a primeira vez que você disputa uma vaga no partido...

- Das outras vezes você foi contra. Você e o Agapito...

- Ciúmes uma hora dessas, Gui. Era outra conjuntura. Você era melhor, mas não o mais viável. É preciso dar qualidade ao debate racial nas próximas eleições. Corremos o risco de ver eleitos gente que ponga no partido, mas sai por aí dizendo que entre Esquerda e Direita continua preto! É isso que você quer pro seu povo, Guilherme? Esse fisiologismo contraditório de batinha africana?

 

O namorado balança a cabeça negativamente. Calado, mas já demonstrando certa autoconfiança, levanta e dá uma volta cautelosa pelo quarto, como se pisasse em delicados planos. Agacha-se em frente à mulher, e tem os olhos úmidos.

 

- Então, querido... Você é a nossa vez! Se eu fosse preta cê ia ver. Eu não ia dar vez a nenhuma ‘candidatura trancinha’, de aparência, e nem a essa falácia de irmandade negra. Mas não sou negra, não tive essa sorte, Gui. É você que tem o pé na senzala, brinca com sorriso triunfante.

 

Ele sente a face aquecer ao ouvir isso, mas algo fresco já desembaça a paisagem que aos poucos consegue vislumbrar. Nem houve mesmo tempo para seu novo otimismo estremecer, pois ela acolheu o rosto dele com as mãos e o levou até o colo do peito. A alça do baby doll desliza, revelando o seio um pouco flácido, mas com um volume e uma atitude que exige ser mordido outra vez. E ele o faz. 

 

 

 

 

 

Lande M. Onawale é escritor e poeta. Colaborou em antologias como Cadernos Negros, e nos documentários “Makota Valdina – um jeito negro de ser e viver” e “Lápis de Cor”. Tem três livros publicados, incluindo “Kalunga” e “Sete: diásporas íntimas”, ilustrados acima. 

SOMOS NÓS, FALANDO DE NÓS, PARA TODO MUNDO.

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